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Alessandra Tavares


O que conhecemos por educação formal nos dias de hoje é resultado de muitos movimentos coletivos, familiares e pessoais que se materializaram nesta política pública. Como a epígrafe que abre esse texto, a educação foi por longos anos um desafio desmedido e “aprender a ler” já foi condição para a cidadania plena, inclusive condição para votar até 1985. O que me encanta nesta letra de Yáyá Massemba é a conexão profunda da cultura e história negra com a busca pela educação de forma comunitária, aprender e ensinar, os dois processos que marca o processo de educação de forma partilhada e popular.


Apesar de atualmente não considerarmos os desafios com relação ao acesso à educação como prioritário, vivemos num país em que 46% da população com mais de 25 anos não concluiu a escolaridade básica e temos a 9,3 milhões de brasileiros analfabetos[1]. Aprender a ler e ensinar os camaradas faz sentido no Brasil do século XXI. 


O direito pleno à educação não nos foi reservada historicamente. Digo, nós pela natureza desta publicação, que apesar de abrir horizontes e ganhar espaços, nasce essencialmente dentro do território do Jardim Ibirapuera, ou seja, nós a população pobre e negra da periferia sul da Cidade de São Paulo. Eu parto da premissa que o acesso à educação de qualidade foi e continua sendo um projeto popular e negro. A luta do clube de mães por creche é muito conhecida, contudo, durante os anos 70 e 80, existiu um protagonismo muito grande das mulheres na luta por escolas na zona sul[2]. Para além das condições de trabalho, muitas vezes evidenciada neste movimento social, o movimento em torno de creches e escolas, está atrelado ao reconhecimento da importância da educação e das possibilidades que esta permitia.


Esse reconhecimento aparece também nos relatos das mulheres filhas de empregadas domésticas, como eu, nascidas neste período que incorpora desde a advertência que “estude, para não limpar a privada de ninguém”, ou até mesmo, “estude e não dependa de ninguém”, até trazer para casa livros, jornais e revistas da casa da “patroa” para nutrir suas casas de palavras. As estratégias são inúmeras, lembro recentemente de escutar de uma grande pesquisadora da literatura que sua mãe a levava ao trabalho quando ela tinha 7 anos. 





Enquanto sua mãe trabalhava, a filha ficava mexendo nos livros da patroa, curiosa, tentando entender os milhares de códigos e escritas do direito, e que a patroa sempre advertia: “você precisa colocar sua filha para aprender a trabalhar. Ela precisa te ajudar e não ficar aí sem fazer nada. Ela vai sofrer muito”. Ela era uma criança negra de 7 anos!


O espaço e a intenção deste ensaio não nos permite avançar muito nas evidências da luta constante da população pobre e negra por educação. Nilma Lino Gomes em “O Movimento Negro Educador: Saberes construídos na luta por emancipação” enriquece esse debate a partir das contribuições para educação formal e comunitária dos movimentos negros. Antes de partirmos para olhar a escola, os profissionais e os desafios educação que temos nos dias atuais precisamos retomar brevemente nossa história contemporânea, afinal, “viver sem conhecer o passado, é viver no escuro.”[3] 


O direito à educação no Brasil é limitado e recente. O direito é garantido apenas para o ciclo básico, ou seja, da educação infantil ao ensino médio, e o acesso ao ensino superior ainda não está garantido para todas e todos os brasileiros. Apesar de legislações anteriores, o direito à educação básica passou a ser garantido somente em 1988, a partir do Artigo 205 Constituição Federal.


Somente em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que o modelo e o funcionamento da educação ganharam formato de lei com alterações importantes em 2008 e 2023. 


Apesar de todo aparato legislativo nos anos 90, as escolas não se materializaram como mágica. Aqueles que têm 40 anos ou mais certamente vão se lembrar das enormes filas, que duravam dias, para conseguir uma vaga nas escolas da zona sul no final dos anos 90, principalmente, acesso ao que conhecemos hoje como ensino médio. O que quero salientar com esse histórico é que a construção da educação pública e gratuita, que muitas vezes aparece como um grande desafio e que a educação do passado era muito melhor, estamos falando de um tempo e lugar excludente e reservava para poucos o direito pleno ao espaço escolar. Os desafios que temos hoje, são os desafios próprios da democracia.



Anabela Gonçalves


Antes de falar de percepções e desejos sobre a cultura na periferia é importante destacar que nossos hábitos culturais foram forjados pelo nosso acesso e influências familiares, escolares e do nosso entorno.Com isso os hábitos culturais são influenciados pela situação comunitária e a distribuição de espaços de lazer, assim como a situação econômica das famílias. Como moradora da periferia, sei que o bar é um grande hábito cultural, para o encontro coletivo, as trocas comunitárias, afirmação de espaços de existência, relações esportivas, troca de conselhos e lamentações, consumo de alimentação típica nordestina, entre outras

diversas referências. Não à toa, os bares no final dos anos 90 viraram espaços dos grandes saraus das periferias da cidade.


A rua, na minha infância, também era um hábito cultural dos finais de semana, cadeiras nas calçadas, crianças brincando, famílias conversando, mas a violência dos anos 90 moldou a transformação desse hábito, sendo cada vez mais tomado pela televisão, que se tornou obsoleta com o advento da internet e dos smartfones, mas que retorna toda vez que uma novela de grande impacto público entra na programação. O cotidiano, sendo o cenário espacial e temporal onde se efetiva a dinâmica familiar, as rotinas e as práticas das pessoas, suas subjetividades, a construção das identidades e sensibilidades que tramitam na relação entre indivíduo e meios de comunicação, quanto de individualização das relações no contexto das histórias de vida familiares e a influência de gêneros ficcionais e seus territórios de ficcionalidade (melodramas, comicidades, narrativas policiais, etc), tudo isso compondo esse imaginário periférico.


A pipa, a bola de gude, a bola de futebol, as amarelinhas, cordas de pular e elástico para jogar, pega-pega, esconde-esconde, entre outras brincadeiras já foram hábitos da infância e adolescência, nesse universo paralelo entre a vida na midiática, que foram mudando com as novas configurações dos bairros e de nossas vidas com o advento da internet. A crise econômica, que prega a empregabilidade dos jovens cada vez mais cedo, se ocupa do tempo das crianças e adolescentes com formações para a cultura do mundo do trabalho, sendo o brincar cada vez menos reconhecido como um hábito cultural importante, saudável e fundamental para o desenvolvimento da nossa subjetividade. O crescimento da área urbana, o aumento no número de automóveis, fios e cabos tornaram certas brincadeiras perigosas e os hábitos tiveram que mudar, mesmo que resistam, por fazerem parte da cultura periférica, ficaram a margem no crescimento da cidade. As festividades de Natal, Ano Novo, Carnaval, festas religiosas, compõe esse vasto complexo de hábitos culturais que elaboram a cultura para além da fruição das linguagens, em conjunto com nossos jeitos de comer, de beber e de dormir, como diria Mário de Andrade, no poema “O poeta come amendoim”.


A periferia também tem a poesia, o forró, o rap, o samba e o punk rock como as trilhas de suas transformações, e que frutificou em uma literatura marginal que foi gradativamente sendo chamada de literatura periférica. A arte e a cultura passaram a ser centrais, elas construíram possibilidades de revigorar o ser periférico.


Houve, nos anos 2000, um processo de difusão dos coletivos culturais, que vão ser alimentados por políticas públicas culturais desse período. O Hip-Hop já havia conquistado uma visibilidade grande por meio dos Racionais MC’s, grupo de rap que usou sua música como uma forma de narrativa da violência e do abandono do Estado às periferias, principalmente a minha, Zona Sul, que é de onde o grupo provém. Então, como contraponto à violência descrita nas manchetes dos jornais, também tivemos um crescimento exponencial do movimento artístico-cultural na região.


O surgimento e atuação de grupos culturais diversos, a produção de um número enorme de eventos, pontuada pelo encontro de gerações distintas e pela aproximação de pessoas e famílias em torno de elementos culturais diversificados é a marca que nossa história nos deixou. Um território que ficou famoso pela violência, hoje é um dos maiores polos da efervescência cultural da Cidade de São Paulo, com bibliotecas comunitárias, saraus, movimentos e eventos culturais que mostram a alma poética existente nesse local.


Também como hábito cultural, as periferias construíram sua linguagem, suas palavras e seus ritos artísticos. A chegada tardia do letramento, das instituições de ensino,fez com que a música e a poesia fossem a maior manifestação dos nossos sentimentos. Isso é, a poesia vem antes da escola, a linguagem poética, contida nos mitos, nas narrativas musicais e na própria reza africana e indígena. A cantiga da benzedeira, as cantigas das brincadeiras, rimas construídas de pequenas histórias não contadas, histórias de colonização e educação jesuítica que ainda permeiam o imagético das rimas que construímos. Como escreveu e cantou Leandro Roque de Silveira - Emicida, eles não vão intender o que são riscos, e nem que os nossos livros de história foram discos. Com isso é importante colocar que empregamos a ideia de hábito para olhar para o que a periferia escolhe como gosto cultural, suas características, sendo algumas ancestrais e outras construídas pelas relações midiáticas ao longo da vida.


Sabemos que infelizmente as relações econômicas estão diretamente ligadas a diversidade de acessos à direitos sociais, e que isso implica também nos hábitos culturais da periferia. Nesse sentido o crescimento da oferta de linguagens culturais, as ações desenvolvidas pelos movimentos de cultura, vem promovendo uma ampliação de vivências das linguagens culturais, transformando uma experimentação em um hábito das novas gerações. Ir ao teatro, ao cinema, clubes, exposições, festivais, hoje faz parte das escolhas culturais, que estão ligadas àquilo que trazemos da nossa família, a comida, o bar, a rua, o samba, a festa, como um hábito que elabora a escolhas.


É sempre importante destacar, que não há homogeneização contida no conceito periferia, pois em livre trânsito pela cidade, para além do circuito do bairro, inúmeras outras experiências, modos de viver, expectativas, violências e lazer são vividos, por tanto, devemos olhar as pessoas sempre como seres nômades, de contornos difusos, que expressam, quando lhe é solicitado, aquilo que de certa forma, representa sua identidade como indivíduo, as fruições que tem conduzido suas escolhas, e escolher sem dúvida é um sinal emblemático da democratização da cultura nos espaços periféricos.


A diversidade de linguagens apontadas, suas capilaridades têm sem dúvida mostrado que, apesar do baixo investimento direto em políticas públicas da cultura nas periferias, o investimento indireto por meio de organizações e movimentos têm ampliado os hábitos culturais existentes. Pesquisar em si é uma elaboração requintada dessa relação entre a cultura e o movimento cultural, em que saímos do conceito de democratização da cultura hegemônica, para a democracia cultural, valorizando as práticas populares e a diversidade cultural existente em todos os territórios. A cultura como hábito e suas transformações são frutos históricos das lutas das periferias.



Marcio Farias e Leticia Prado


A escola é um microcosmo da sociedade e de sua comunidade. Compõe o território e sua cultura. Ainda que, em muitas circunstâncias, as comunidades não interajam com a escola a partir dessa perspectiva comunitária, a escola integra (ou deveria integrar) a relação da comunidade com seus direitos a aprender e se desenvolver. Enquanto estabelecimento destinado ao ensino coletivo, sua função ética é promover a formação e o desenvolvimento de cada indivíduo em suas dimensões políticas, culturais, sociais e cognitivas. 


Porém, escola também é uma espécie de escoadouro dos dilemas, conflitos e contradições de uma dada comunidade. Deste modo, os dilemas globais e locais exercem uma função dinâmica nas unidades escolares, convocando seus múltiplos agentes a refletir constantemente sobre se a escola deve absorver essas demandas sociais e, então, entender que sim, como?


Portanto, como espaço que canaliza as potências, mas também os desafios do território em que está inserido, um elemento central na busca de soluções aos atuais desafios no ambiente escolar passa por entender as questões sociais, suas características histórico-culturais e suas dimensões subjetivas.


É nesse complexo de articulações que se insere e se deve pensar o tema da saúde mental no ambiente escolar, visto que se trata de um problema - e uma demanda - social e coletiva.


O tema da saúde mental no ambiente escolar historicamente teve como ênfase o aluno, a partir da queixa escolar. Ou seja, com ênfase no processo de ensino aprendizagem, focou-se no aluno, ora a partir de perspectivas conservadoras que buscavam no indivíduo as razões de suas dificuldades de aprendizagem, ora por perspectivas críticas que abordam o fracasso escolar a partir de uma leitura multideterminada e holística. Ambas, no entanto, ficavam no aluno e, com isso, negligenciaram os demais agentes escolares e seus processos de subjetivação no ambiente escolar. 


É recente, nesse sentido, o olhar crítico para os processos de subjetivação do professor no ambiente escolar. Fruto de um debate público pautado pelos próprios docentes, vem tentando evidenciar a situação crônica que envolve o sofrimento e o adoecimento psíquico do professorado. Processo antigo que paulatinamente foi acometendo parte da categoria que atua na educação pública, tornou-se nos últimos anos um grande problema de saúde pública é um tema político a ser refletido.


Fruto do desdobramento do avanço neoliberal sobre a agenda pública, o sucateamento da educação pública se reflete de maneira a tornar o ambiente de trabalho para o professor inóspito, hostil e insalubre. Primeiro, pela baixa remuneração para profissionais com formação superior. Soma-se a precarização das relações de trabalho. No estado, por exemplo, não há concursos públicos para docentes desde 2013. Desde então, o professorado tem sido admitido a partir de contratos temporários. E mesmo entre os temporários há diferenças que tornam ainda mais precária as relações de trabalho. 


Além das condições de trabalho, a estrutura física também é um dos aspectos que influi na dimensão subjetiva da relação professor com o aluno. As escolas se assemelham às prisões, com grades por todos os lados, agentes escolares responsáveis por abrir e fechar portões entre os ambientes da escola. Nesse sentido, numa lógica que trata o aluno como um potencial agente perturbador, e professor, nessa arquitetura, é convidado a ser mais um agente punitivista na formação educacional. 


Na relação com a comunidade, a ausência dos familiares no ambiente escolar é mais um fator agravante para a sobrecarga de docente, que se vê sozinha no processo de formação de alunos.

Essa se agrava diante de uma conjuntura de recrudescimento político em que a comunidade passa a ver e docente como um inimigo, um doutrinador político de ideias subversivas que corrompem a família e a religião. 


Um outro fator que tem provocado sofrimento psíquico do professorado é a implementação de plataformas digitais que visam substituir atribuições outrora do professor, os sobrecarregam de demandas e tiram o papel criativo da docência, influindo inclusive na autonomia e liberdade de cátedra. 


Poderíamos citar outros aspectos que precisam ser refletidos para se pensar a saúde mental do professorado, tais como a violência e como ela se reflete no ambiente escolar, a reforma do ensino médio – que trouxe prejuízo na formação básica geral dos estudantes e fez com que professores deixassem de atuar em suas disciplinas específicas ou correlatas e passassem a ministrar disciplinas inventadas para atender uma suposta demanda do mercado – a relação de fiscalização e controle do governo por meio de equipes gestoras, etc. 


Todos esses aspectos precisam ser submetidos ao escrutínio de análise que intersecciona raça, classe, gênero e sexualidade como marcadores sociais da diferença. Esses marcadores são analisadores importantes para se entender aquilo que é comum a classe, mas também as diferenças de ponto de partidas e chegadas de indivíduos oriundos de grupos sociais subalternizados. 


Pois bem, como alternativa, a partir do exposto, não há segredos: o caminho se faz ao caminhar. Soluções coletivas para problemas que são coletivos.


A comunidade, que envolve o território e seus agentes, precisa ir ao encontro das unidades escolares e dialogar. É fundamental que as entidades de bairros, as associações, os grupos culturais, os movimentos sociais e demais agentes políticos se irmanam em solidariedade ao professorado. Não se trata da saúde mental sem reverter o quadro em que o ensino público está. É preciso reverter a forma como a sociedade interage com a escola e com o professor.


Por fim, em termos de cuidado mais imediatos, os serviços e equipamentos públicos de saúde do território precisam pensar estratégias específicas para o atendimento do professorado, bem como as diretorias regionais de ensino, secretarias municipais e estadual, prefeitura e governo do estado, os agentes legislativos e o próprio terceiro setor também podem articular espaços como rodas de conversas, rodas terapêuticas e espaços de discussão crítica sobre educação como ações emergenciais.





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