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Hábitos Culturais e acesso à Cultura na Periferia

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Anabela Gonçalves


Antes de falar de percepções e desejos sobre a cultura na periferia é importante destacar que nossos hábitos culturais foram forjados pelo nosso acesso e influências familiares, escolares e do nosso entorno.Com isso os hábitos culturais são influenciados pela situação comunitária e a distribuição de espaços de lazer, assim como a situação econômica das famílias. Como moradora da periferia, sei que o bar é um grande hábito cultural, para o encontro coletivo, as trocas comunitárias, afirmação de espaços de existência, relações esportivas, troca de conselhos e lamentações, consumo de alimentação típica nordestina, entre outras

diversas referências. Não à toa, os bares no final dos anos 90 viraram espaços dos grandes saraus das periferias da cidade.


A rua, na minha infância, também era um hábito cultural dos finais de semana, cadeiras nas calçadas, crianças brincando, famílias conversando, mas a violência dos anos 90 moldou a transformação desse hábito, sendo cada vez mais tomado pela televisão, que se tornou obsoleta com o advento da internet e dos smartfones, mas que retorna toda vez que uma novela de grande impacto público entra na programação. O cotidiano, sendo o cenário espacial e temporal onde se efetiva a dinâmica familiar, as rotinas e as práticas das pessoas, suas subjetividades, a construção das identidades e sensibilidades que tramitam na relação entre indivíduo e meios de comunicação, quanto de individualização das relações no contexto das histórias de vida familiares e a influência de gêneros ficcionais e seus territórios de ficcionalidade (melodramas, comicidades, narrativas policiais, etc), tudo isso compondo esse imaginário periférico.


A pipa, a bola de gude, a bola de futebol, as amarelinhas, cordas de pular e elástico para jogar, pega-pega, esconde-esconde, entre outras brincadeiras já foram hábitos da infância e adolescência, nesse universo paralelo entre a vida na midiática, que foram mudando com as novas configurações dos bairros e de nossas vidas com o advento da internet. A crise econômica, que prega a empregabilidade dos jovens cada vez mais cedo, se ocupa do tempo das crianças e adolescentes com formações para a cultura do mundo do trabalho, sendo o brincar cada vez menos reconhecido como um hábito cultural importante, saudável e fundamental para o desenvolvimento da nossa subjetividade. O crescimento da área urbana, o aumento no número de automóveis, fios e cabos tornaram certas brincadeiras perigosas e os hábitos tiveram que mudar, mesmo que resistam, por fazerem parte da cultura periférica, ficaram a margem no crescimento da cidade. As festividades de Natal, Ano Novo, Carnaval, festas religiosas, compõe esse vasto complexo de hábitos culturais que elaboram a cultura para além da fruição das linguagens, em conjunto com nossos jeitos de comer, de beber e de dormir, como diria Mário de Andrade, no poema “O poeta come amendoim”.


A periferia também tem a poesia, o forró, o rap, o samba e o punk rock como as trilhas de suas transformações, e que frutificou em uma literatura marginal que foi gradativamente sendo chamada de literatura periférica. A arte e a cultura passaram a ser centrais, elas construíram possibilidades de revigorar o ser periférico.


Houve, nos anos 2000, um processo de difusão dos coletivos culturais, que vão ser alimentados por políticas públicas culturais desse período. O Hip-Hop já havia conquistado uma visibilidade grande por meio dos Racionais MC’s, grupo de rap que usou sua música como uma forma de narrativa da violência e do abandono do Estado às periferias, principalmente a minha, Zona Sul, que é de onde o grupo provém. Então, como contraponto à violência descrita nas manchetes dos jornais, também tivemos um crescimento exponencial do movimento artístico-cultural na região.


O surgimento e atuação de grupos culturais diversos, a produção de um número enorme de eventos, pontuada pelo encontro de gerações distintas e pela aproximação de pessoas e famílias em torno de elementos culturais diversificados é a marca que nossa história nos deixou. Um território que ficou famoso pela violência, hoje é um dos maiores polos da efervescência cultural da Cidade de São Paulo, com bibliotecas comunitárias, saraus, movimentos e eventos culturais que mostram a alma poética existente nesse local.


Também como hábito cultural, as periferias construíram sua linguagem, suas palavras e seus ritos artísticos. A chegada tardia do letramento, das instituições de ensino,fez com que a música e a poesia fossem a maior manifestação dos nossos sentimentos. Isso é, a poesia vem antes da escola, a linguagem poética, contida nos mitos, nas narrativas musicais e na própria reza africana e indígena. A cantiga da benzedeira, as cantigas das brincadeiras, rimas construídas de pequenas histórias não contadas, histórias de colonização e educação jesuítica que ainda permeiam o imagético das rimas que construímos. Como escreveu e cantou Leandro Roque de Silveira - Emicida, eles não vão intender o que são riscos, e nem que os nossos livros de história foram discos. Com isso é importante colocar que empregamos a ideia de hábito para olhar para o que a periferia escolhe como gosto cultural, suas características, sendo algumas ancestrais e outras construídas pelas relações midiáticas ao longo da vida.


Sabemos que infelizmente as relações econômicas estão diretamente ligadas a diversidade de acessos à direitos sociais, e que isso implica também nos hábitos culturais da periferia. Nesse sentido o crescimento da oferta de linguagens culturais, as ações desenvolvidas pelos movimentos de cultura, vem promovendo uma ampliação de vivências das linguagens culturais, transformando uma experimentação em um hábito das novas gerações. Ir ao teatro, ao cinema, clubes, exposições, festivais, hoje faz parte das escolhas culturais, que estão ligadas àquilo que trazemos da nossa família, a comida, o bar, a rua, o samba, a festa, como um hábito que elabora a escolhas.


É sempre importante destacar, que não há homogeneização contida no conceito periferia, pois em livre trânsito pela cidade, para além do circuito do bairro, inúmeras outras experiências, modos de viver, expectativas, violências e lazer são vividos, por tanto, devemos olhar as pessoas sempre como seres nômades, de contornos difusos, que expressam, quando lhe é solicitado, aquilo que de certa forma, representa sua identidade como indivíduo, as fruições que tem conduzido suas escolhas, e escolher sem dúvida é um sinal emblemático da democratização da cultura nos espaços periféricos.


A diversidade de linguagens apontadas, suas capilaridades têm sem dúvida mostrado que, apesar do baixo investimento direto em políticas públicas da cultura nas periferias, o investimento indireto por meio de organizações e movimentos têm ampliado os hábitos culturais existentes. Pesquisar em si é uma elaboração requintada dessa relação entre a cultura e o movimento cultural, em que saímos do conceito de democratização da cultura hegemônica, para a democracia cultural, valorizando as práticas populares e a diversidade cultural existente em todos os territórios. A cultura como hábito e suas transformações são frutos históricos das lutas das periferias.


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